O homem vai rua afora, ajeita os óculos, olha para a direita e para a esquerda, cospe ao chão, olha agora para trás e não pára. Ouve uma voz lhe chamando, olha para trás novamente e não vê ninguém. Quer atravessar a rua, mas teme a aproximação de um automóvel sendo dirigido por um motorista bêbado, imprudente e que ali estivesse para tão somente atropelá-lo. Pára, olha para os sapatos pretos e vê que não estão bem lustrados, pensa em procurar um engraxate, mas ali não haveria nenhum, esquece os sapatos; de posse de um exemplar de jornal, põe-se a folheá-lo, de relance, abre de imprevisto na página de economia, lê sobre os índices de uma bolsa de valores e não se interessa pela leitura; abre na página de esportes e vê uma manchete sobre seu time preferido e não lê o noticiário. A política talvez lhe interessasse mais, odiava política, mas achava bom ler sobre política para depois fazer uma sátira e publicar em um jornal local. De repente, ouve de novo a voz, agora melíflua, talvez sobre os resquícios da leitura costumeira de Florbela Espanca ou Rimbaud. Não dobra a rua, pois os olhos fitos em um outdoor o sugestionou a olhar o sinaleiro, teria que caminhar cinqüenta metros em trinta segundo e atravessar a rua sem perigo algum. Assim o fez, o sinal lhe permitia passar com segurança, mesmo assim o medo sempre lhe respondia como disciplina.
Da esquina avistou o enorme trem pela primeira vez, estancou o olhar camponês que a tudo impressiona e a tudo sugere. A curiosidade pela máquina sobre trilhos infinitos estava agora a olho nu, instante de rara aparição. Haveria de caminhar mais apressadamente para não perder de vista o magnífico vulto de ferro que tanto o impressionava desde os tempos em que assistia a westerns, quando criança. Isso era impossível, o trem tinha que seguir e a ele não importava a direção, o aspecto do tempo - a curiosidade era momentânea, haja vista a abundância de paisagem visual da grande cidade.
Ali na esquina, o homem estava certo de que alguém lhe reconheceria, no mundo em que a imagem é a razão de ser da pessoa, convém-nos tornar públicas as atitudes e as observações, sejam as palavras desprezíveis e as imagens impalpáveis. As pessoas têm em comum o gosto pelos holofotes e pela quebra da monotonia. Por um instante ali ficou, esfregando as mãos, folheando o jornal como se estivesse lendo, tudo para ser visto e encontrar alguém que lhe puxasse a conversa.
_ Em que posso ajudá-lo, senhor... disse uma moça dos cabelos crespos e que usava uma camisa branca com dois corações paralelos.
_ Nada que a senhorita possa resolver-me – disse o homem. – Afinal o que eu procuro parece não ser deste mundo.
Um carro desceu velozmente a rua vertical à que ele estava conversando com a moça; olhos no olhos, em sinal de reconhecimento à custa, ofuscado pelo insulfilm, a primeira imagem que lhe veio à mente foi a do Dr. Rosas, amigo da família em outras épocas. Desfizeram-se tudo em segundos, logo que o carro dobrou a esquina à direita; tão logo a cena tornou-se esfacelada, em flash, como se o carro fosse focalizado a 220 km por hora e sob transe, era capaz de imaginar o caos da cidade grande.
Não se ouviu mais a voz meiga da moça, e o homem ali parado, olhos atentos nos caracteres, na propaganda, no formato e nas cores variadas da impressão offset e de quando em vez olhando o vestir, o andar das pessoas e o sinal de trânsito para que, na hora que melhor lhe conviesse pudesse seguir destino sabemos lá por onde. Ali ficou mais cinco minutos, sem se dar conta que estava a coçar a barriga e as virilhas, a palitar os dentes como lhe era de hábito. Só veio a dar conta de que a vida lhe transcorria cotidianamente quando ouviu ao longe o apito do trem. Um assalto seguido de morte, na mudança de sinal do trânsito para vermelho. Uma mulher loira, de cabelos longos e olhos mel, jazia caída ao volante do automóvel prata, há poucos metros dele, que nada poderia fazer enquanto o assassino fugia em um carro preto.
Em segundos, o que lhe fora pacato na vida, agora se perdera com a efemeridade brusca das coisas; o belo e o profano passaram a conflitar nesta mente parva como indexador de conceitos. A cena mais grotesca de um crime vista pela primeira vez por olhos tão ingênuos serviu-lhe de modelo à reconstrução de seu conceito de arte, arte que era vista senão pela arte dos poetas e dos artistas plásticos, agora passou a uma infinidade de tons a partir do fluir vermelho do sangue à realidade animal, grotesca, mediúnica e viva e consistente.
O homem, ajeitando novamente os óculos, ali ficou à espera da policia, certamente seria relatado a testemunhar o crime, talvez o único a ser citado no boletim de ocorrência a testemunhar. Sem saber o que fazer, sentou-se em um banco de táxi e ali ficou sem lenço nem documento. O engraxate que por ali passava, fez-lhe companhia, tão logo ouve o som do carro da polícia...
Antonio, obrigada por ter postado no meu blog. Fiquei feliz que tenha gostada da Mahalia e, claro do vosso (posso dizer nosso? Posso dizer que tambem e meu por me dizer tanto?) :) lindissimo bossa nova.
ResponderExcluirAdorei as poesias que escreveu e mesmo a prosa.
A frase "o belo e o profano passaram a conflitar nesta mente parva como indexador de conceitos." esta simplesmente genial... E impressionante como por vezes vemos a realidade como numa tela.. A indiferenca, por vezes, assusta-me.
Abracos, Continue assim!
Aline