quinta-feira, 26 de março de 2009

CONTO



O homem vai rua afora, ajeita os óculos, olha para a direita e para a esquerda, cospe ao chão, olha agora para trás e não pára. Ouve uma voz lhe chamando, olha para trás novamente e não vê ninguém. Quer atravessar a rua, mas teme a aproximação de um automóvel sendo dirigido por um motorista bêbado, imprudente e que ali estivesse para tão somente atropelá-lo. Pára, olha para os sapatos pretos e vê que não estão bem lustrados, pensa em procurar um engraxate, mas ali não haveria nenhum, esquece os sapatos; de posse de um exemplar de jornal, põe-se a folheá-lo, de relance, abre de imprevisto na página de economia, lê sobre os índices de uma bolsa de valores e não se interessa pela leitura; abre na página de esportes e vê uma manchete sobre seu time preferido e não lê o noticiário. A política talvez lhe interessasse mais, odiava política, mas achava bom ler sobre política para depois fazer uma sátira e publicar em um jornal local. De repente, ouve de novo a voz, agora melíflua, talvez sobre os resquícios da leitura costumeira de Florbela Espanca ou Rimbaud. Não dobra a rua, pois os olhos fitos em um outdoor o sugestionou a olhar o sinaleiro, teria que caminhar cinqüenta metros em trinta segundo e atravessar a rua sem perigo algum. Assim o fez, o sinal lhe permitia passar com segurança, mesmo assim o medo sempre lhe respondia como disciplina.
Da esquina avistou o enorme trem pela primeira vez, estancou o olhar camponês que a tudo impressiona e a tudo sugere. A curiosidade pela máquina sobre trilhos infinitos estava agora a olho nu, instante de rara aparição. Haveria de caminhar mais apressadamente para não perder de vista o magnífico vulto de ferro que tanto o impressionava desde os tempos em que assistia a westerns, quando criança. Isso era impossível, o trem tinha que seguir e a ele não importava a direção, o aspecto do tempo - a curiosidade era momentânea, haja vista a abundância de paisagem visual da grande cidade.
Ali na esquina, o homem estava certo de que alguém lhe reconheceria, no mundo em que a imagem é a razão de ser da pessoa, convém-nos tornar públicas as atitudes e as observações, sejam as palavras desprezíveis e as imagens impalpáveis. As pessoas têm em comum o gosto pelos holofotes e pela quebra da monotonia. Por um instante ali ficou, esfregando as mãos, folheando o jornal como se estivesse lendo, tudo para ser visto e encontrar alguém que lhe puxasse a conversa.
_ Em que posso ajudá-lo, senhor... disse uma moça dos cabelos crespos e que usava uma camisa branca com dois corações paralelos.
_ Nada que a senhorita possa resolver-me – disse o homem. – Afinal o que eu procuro parece não ser deste mundo.
Um carro desceu velozmente a rua vertical à que ele estava conversando com a moça; olhos no olhos, em sinal de reconhecimento à custa, ofuscado pelo insulfilm, a primeira imagem que lhe veio à mente foi a do Dr. Rosas, amigo da família em outras épocas. Desfizeram-se tudo em segundos, logo que o carro dobrou a esquina à direita; tão logo a cena tornou-se esfacelada, em flash, como se o carro fosse focalizado a 220 km por hora e sob transe, era capaz de imaginar o caos da cidade grande.
Não se ouviu mais a voz meiga da moça, e o homem ali parado, olhos atentos nos caracteres, na propaganda, no formato e nas cores variadas da impressão offset e de quando em vez olhando o vestir, o andar das pessoas e o sinal de trânsito para que, na hora que melhor lhe conviesse pudesse seguir destino sabemos lá por onde. Ali ficou mais cinco minutos, sem se dar conta que estava a coçar a barriga e as virilhas, a palitar os dentes como lhe era de hábito. Só veio a dar conta de que a vida lhe transcorria cotidianamente quando ouviu ao longe o apito do trem. Um assalto seguido de morte, na mudança de sinal do trânsito para vermelho. Uma mulher loira, de cabelos longos e olhos mel, jazia caída ao volante do automóvel prata, há poucos metros dele, que nada poderia fazer enquanto o assassino fugia em um carro preto.
Em segundos, o que lhe fora pacato na vida, agora se perdera com a efemeridade brusca das coisas; o belo e o profano passaram a conflitar nesta mente parva como indexador de conceitos. A cena mais grotesca de um crime vista pela primeira vez por olhos tão ingênuos serviu-lhe de modelo à reconstrução de seu conceito de arte, arte que era vista senão pela arte dos poetas e dos artistas plásticos, agora passou a uma infinidade de tons a partir do fluir vermelho do sangue à realidade animal, grotesca, mediúnica e viva e consistente.
O homem, ajeitando novamente os óculos, ali ficou à espera da policia, certamente seria relatado a testemunhar o crime, talvez o único a ser citado no boletim de ocorrência a testemunhar. Sem saber o que fazer, sentou-se em um banco de táxi e ali ficou sem lenço nem documento. O engraxate que por ali passava, fez-lhe companhia, tão logo ouve o som do carro da polícia...